Veneno Remédio
” É remédio tarja preta doutor ? ” É muito comum nos deparamos no dia a dia do consultório com perguntas como esta. Medo justificável porém nem sempre com fundamento. As medicações não são menos ou mais fortes ou tóxicas pela tarja que levam na caixa e sim pela forma e condições com as quais são utilizadas. Meu maior medo são os analgésicos, ditos comuns, que são vendidos livremente em farmácias no estilo self-service.
O abuso destas drogas é um problema de saúde pública muito maior que os remédios ditos “fortes”.
Lembrando que quando mal indicado qualquer remédio pode se tornar um veneno!
Segue abaixo um trecho escrito por um paciente meu após ler a bula de sua medicação (diga-se de passagem um erro! Costumo brincar que bula é para médico e advogado e não para o paciente). As palavras demonstram toda esta apreensão quanto às medicações:
“Saiu do consultório com uma prescrição médica no bolso e uma esperança na cabeça. Precisava comprar urgentemente aquele remédio que, de acordo com o Doutor, seria finalmente responsável pelo seu alívio. Àquela altura, a dor já ultrapassava em muito o limite suportável. Havia alguns dias já vinha pensando que, se continuasse daquele jeito, não valeria a pena dar continuidade à sua vida. Tinha ouvido falar de dores paralisantes, o que definitivamente não era seu caso: a sua fazia-o dançar. Não conseguia ficar parado. Era como o personagem de Nelson Rodrigues, que parecia dançar mambo ao manifestar seu desespero.
Desde o início das crises que sua biografia se resumia à resignação: ora sentir a dor lancinante, ora esperar por ela. E essa expectativa da dor lhe era tão horrenda e massacrante quanto a própria. Pela primeira vez cogitava se matar. Mas agora, ao que tudo indicava, não seria mais necessária tão drástica medida. O Doutor havia prescrito uma droga nova, que vinha sendo utilizada com grande sucesso em casos como o de Dorval.
Tão logo chegou à farmácia, foi lançando mão da receita médica e entregando, quase orgulhoso, ao farmacêutico no balcão. Ele leu, entrou para a sala do estoque e em poucos segundos voltava trazendo consigo a caixinha salvadora, que para Dorval era o passaporte para a vida. Entregou-a, mas não devolveu a receita médica: “É medicação com tarja, meu senhor. Vai só o remédio, a receita fica.” Dorval ficou preocupado. Em toda a sua vida, não se lembrava de episódio parecido, em que o farmacêutico tivesse retido a receita médica. “Deve ser um remédio muito forte mesmo”, pensou.
Chegou em casa ansioso para tomar logo o comprimido, na esperança da interrupção de suas crises, vislumbrando poder voltar a desfrutar novamente da euforia da saúde, coisa que ele agora sabia como poucos valorizar. Tinha a
convicção de que saberia extrair do corpo saudável a mesma sensação de prazer e alucinação experimentada e relatada por quem injetava heroína pela primeira vez.
Antes de tomar o remédio, entretanto, em virtude da curiosidade aguçada pela retenção da receita médica pelo farmacêutico e pela tarja na caixa do remédio, resolveu ler a bula. “Os efeitos colaterais são ganho de peso, dificuldade de concentração e memória, tremor, sedação, problemas de coordenação, distúrbios gastrointestinais, perda de cabelos, leucocitose benigna, acne e edema. Também foram relatadas alterações eletrocardiográficas e hipotiroidismo. Pode produzir convulsões, coma e por fim a morte”. Ficou paralisado. Mas precisamente naquele momento é que se revelava, nua e crua, a real dimensão do seu problema. Pois aquele veneno, uma substância capaz de causar coma e morte, era algo que seu médico havia receitado para que ele melhorasse. “Se um veneno desses é o que vai me aliviar, então posso ter certeza que a minha situação está mesmo péssima”, concluiu. E tomou o comprimido.” “
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